A Duas Mãos






Capítulo XIII

Heitor


Posso ficar horas a fio sem pestanejar. É uma capacidade que descobri em criança e fui aperfeiçoando nas reverberações dos dias. É um exercício libertador e vagamente iniciático. Ver quanto tempo consigo ser eu, ser-vente, que não vedor. Só há duas maneiras de ser Uno: de olhos bem fechados ou de olhos bem abertos. Pelo menos enquanto estamos vivos.
Uma mulher de cinquenta anos, com olhos de criança e uma madeixa azul, levanta o olhar do livro de poemas de Mário de Sá-Carneiro e fita-me, intrigada. Parece desconfiar. Contrafeito, pestanejo e adopto uma postura neutra de passageiro de comboio. Caramba, voltei a perder-me, outro já habita a minha concha, alegre por me suceder, triste por não se saber. Vêm-me à memória as palavras de Pessoa: “Não sei e sei-o bem”. Pela janela, o mundo, prisioneiro do seu tempo, fica para trás a grande velocidade.
Eis-me na velha cidade, acocorada sobre o Douro, as mãos frementes na máquina digital. Hesito entre deambular a pé e entrar no metro de superfície. Escolho a primeira opção. Caminhar é bom, dá-nos a ilusão de andarmos.
De súbito, um nome de rua agitou-me o carrilhão da memória. Abri muito os olhos, forcejando nos fios do esquecimento, como uma mosca debatendo-se numa teia de aranha. Enfim, acabei por me libertar. Claro! Os envelopes do banco… na secretária do senhor Alegria. Mecânica e celeremente, o meu olhar deslizou pelo fio do passeio. Lá estava ele. O Banco.
Muito azul. Como nos envelopes timbrados que chegam ao Estúdio Alegria. Não entro. Em frente, há uma esplanada. Mesmo em frente. Os vidros não ajudam nada, porque produzem um efeito reflector. Procuro o melhor ângulo. Tenteio uma posição negligente, peço um “cimbalino” e coloco a máquina na melhor posição. Durante uma hora, consigo obter várias imagens do interior. Apago bastantes que não tinham nitidez, embora gostasse delas. Fico órfão. Vou disfarçando a minha permanência na esplanada com uma leitura falsamente absorta da revista de fotografia que trouxe comigo.
Não trabalham muitas pessoas no banco. Parecem-me ser apenas sete. E há uma só mulher. Entre todos, destaca-se um fulaninho petulante de bigode que ciranda sem parar pela dependência, espalhando sorrisos de plástico, em esgares de máscara de ferro. Vejo mais cinco homens, quatro deles, sentados ao balcão com um ar de cadáver adiado. O outro surge de vez em quando dum gabinete ao fundo, ostentando uma impavidez de chefe. Deve ser o chefe. Mas quem será o Antunes. Será ele?
Resolvo, enfim, entrar. Vasculho os folhetos que prometem dinheiro fácil, rápido e ainda garantem prémios fabulosos. O ceú aqui tão perto, porra.
Subitamente, o toque de telemóvel. Aquele, verde e hediondo que atribuí ao número do senhor Alegria. Desligo. Nem na folga me deixa em paz, o velho emplastro! O toque inopinado parece ter despertado a funcionária. Olha, curiosa, para o fio que trago ao pescoço. Tapo o peito com a camisa, instintivamente. Desvia o olhar e pega noutro maço de notas, como se se tratasse de uma batata. De repente, ouço-a chamar:
- Antunes, o teu...
| posted by Mito, terça-feira, novembro 07, 2006 | 12 comments |






Capítulo XI

Heitor

Às oito da manhã, já estava na estação. Os azulejos azuis que a cobrem de motivos naturalistas são um elo de ligação entre épocas distintas, função tornada mais evidente depois das tremendas obras que esventraram o subsolo e criaram uma vasta cratera de galerias onde se ouvem passos apressados por entre pastosos e sonolentos avisos sonoros de difícil inteligibilidade. Vai dar entrada na linha número um o comboio rápido Alfa Pendular proveniente de Lisboa - Santa Apolónia com destino a Porto-Campanhã. Faz paragem em Espinho e Vila Nova de Gaia. Sai dentro de momeeeeentos…
A maioria dos passageiros sabe a cantilena de cor. Alguns chegam a entoar os dizeres, caricaturando a melodia insípida do velho funcionário que os placards de aeroporto não destronaram ainda. É um pregão, uma voz do passado que valsa perfeitamente com a azulejaria da fachada.
No largo em frente à estação, reencontrei o velho “tolinho dos comboios”. Recuo vinte anos e foco a sua silhueta percorrendo as plataformas com passo decidido, dando ordens a toda a gente, apitando com vigor, aqui e ali, interpelando com ira os passageiros, exigindo os bilhetes ou o dinheiro. Por vezes, executava uma imaginária ligação telefónica num qualquer poste e encetava logo ali uma intrincada teia de resoluções de problemas de tráfego, acidentes, avarias, etc. Mas o que mais impressionava quem assistia era a facilidade com que desfiava todo o rosário de estações e apeadeiros, bem como seus horários, tudo na ponta da língua, sem hesitações nem gaguejos. Um mundo perfeito, um mundo alienado, uma constelação de topónimos e números, girando, girando, girando sem nunca sair dos carris.
Desta vez, encontrava-se no exterior. A constelação tinha-se estilhaçado. A outrora imutável configuração ferroviária de décadas tinha-se desmoronado. Procurara refúgio nas ruas da cidade, com o eterno apito na boca e o bloco de notas com o lápis dependurado. Nadava agora por entre as filas de trânsito, o mesmo sorriso trocista, a mesma máscara de zombaria. Ouvi-o indagar um transeunte divertido:
- Sabes quantos anos tenho?
- Não. Quantos?
- Sessenta e cinco. E o meu pai, sabes quantos anos tem?
- Quantos?
- Tem quinze.
- Quinze? Como é que pode ser?
- É a vida!
E seguiu viagem, orgulhoso dos seus segredos existenciais.
Com a máquina digital, tirei-lhe uma foto, em troca de um euro. Tirei-lhe várias, até conseguir uma de olhos fechados. Em todas as imagens de olhos abertos, um rosto interrogando-me Achas-me louco? Louco!
Mas, de olhos fechados, a verdade em gemidos! Sim, somos loucos…Queres ir andar no comboio-fantasma comigo?
Oito e vinte e quatro. Entrei na carruagem, rumo ao Porto. Um dia de folga na grande cidade. Eu e a minha máquina fotográfica digital. O dia prometia uma luz propícia. Escorriam gargalhadas tristes dos candeeiros.
Nunca tiro fotografias aos passageiros que dormitam nas carruagens. Quando estão mergulhadas no sono, as pessoas parecem abrir os olhos para a realidade e continuam imersas na cegueira.
Na grande cidade, conseguiria muitas imagens novas, pensava, ansioso. Todavia, nesse dia, não chegaria a captar nenhum rosto capaz de me ver.
| posted by Mito, quarta-feira, setembro 13, 2006 | 2 comments |


Capítulo IX

Heitor

Valsa dos Clowns é o título da música preferida de Modesto, o peixe. Pego no CD e, mais uma vez, interpreto o ritual. Bato teatralmente com os nós dos dedos no vidro do aquário. Os barbilhos de Modesto agitam-se imperceptivelmente por detrás dum pequeno esconderijo basáltico. Levanto a tampa do aquário e lanço na água alguns farrapos de comida para peixe. Nada, nem um movimento. O jogo. Coloco o CD no leitor e selecciono a faixa. A voz de Jane Duboc cintila nas palavras de Chico Buarque: Em toda canção / O palhaço é um charlatão e vai deslizando languidamente pelo forro de madeira do tecto, à procura duma saída para as nuvens. No momento em que se cantam os versos Dizem que seu coração pintado / Toda tarde de domingo chora, o aristocrático peixe abandona o refúgio e encaminha-se para o vidro, atirando-me um seco “Olá”. Depois, vira-me costas e nada em busca de comida, engolindo-a em sorvos precisos e violentos.
- Novidades? – perguntou-me com fingido desinteresse.
- Algumas – respondi, displicentemente – comprei o equipamento.
- A sério? Conseguiste fazer tudo isso sozinho?
- Deixa-te de sarcasmos. E até o montei.
- Não acredito. Como conseguiste, sem me pedir ajuda?
- Ou paras com isso ou não te conto mais nada. Foi fácil; limitei-me a seguir as instruções que vinham com a webcam. Não é nada difícil, aliás.
- Devo recordar a quem se deve a ideia original?
- Pronto, pronto… Tal como tu tinhas sugerido, fui a uma loja de informática e comprei a câmara. Como o senhor Alegria não estava (como sabes, foi para a Suíça outra vez), entrei no seu gabinete…
- Para a Suíça, dizes tu… pois, pois, ainda estou para saber que raio vai lá fazer esse marmelo!
- Sabes muito bem: vai visitar a irmã, coitadinha.
- Ai, sim? Alguma vez a viste?
- Na verdade, não, mas sei que existe. Há dias, o Tó Luís…
- Qual Tó Luís? O da loja dos animais?
- Sim, esse. Por que falas nisso? Recordações da tua vida anterior?
- Bah, não tenho memória desse período. Desconfio que nunca lá estive.
- Nunca lá estiveste? Vieste de lá, dentro dum saco…
- Pára, pára, vais recomeçar a imaginar melodramas baratos? Deve haver vagas para guionistas em Hollywood!
- Pronto, já entendi. Vamos então ao que interessa.
- Já que tanto insistes, conta lá.
- Está bem, mas estava a dizer-te que o Tó Luís comentou comigo que o pai dele conheceu a irmã do senhor Alegria.
- Pode lá ser!
- Não só a conheceu como os dois se apaixonaram e tiveram um caso amoroso.
- Só mesmo uma tipa doida para alinhar com o pai desse energúmeno!
- Acontece que a mana Alegria não era tolinha. Pelo menos, não nessa época. O pai dela, enfurecido com o romance ‑ não te esqueças que o pai do Tó Luís era um modesto lavrador ‑ , enviou-a para um colégio na Suíça e nunca mais se viram. A valsa é dançada a dois, mas tem um ritmo ternário...
- Então, mas a doida não estava num manicómio?
- Sanatório. Mas ninguém sabe muito bem o que aconteceu a seguir, pode ter enlouquecido, pode ter adoecido…
- Pode ter morrido.
- Isso não, o senhor Alegria vai visitá-la todos os anos!
- Irá mesmo? Nem sabes se vai à Suíça.
- Vai, porque lhe vi o bilhete de avião para Zurique.
- Está bem, e essa criatura tinha nome?
- Chamava-se Paciência. Paciência Alegria.
A música terminava E esse charlatão / Vai cantar uma canção. Modesto impacientou-se:
- Mas, afinal, o plano, executaste-o ou não?
- Claro que sim. Olha, ouve.
Nas prateleiras, cinquenta mil pares de olhos fecharam-se ainda mais.
| posted by Mito, domingo, agosto 20, 2006 | 1 comments |




CAPÍTULO VII

Heitor

Pessoa importante, nunca foi algo que quisesse ser. No entanto, ansiava por me libertar da servidão do meu trabalho no Estúdio.
No dia em que, pela primeira vez, me foi dada a possibilidade de tirar fotografias tipo passe e as estraguei – pelo menos, aos olhos perros do senhor Tristão –, fui alvo de um raspanete do patrão tão veemente que ponderei seriamente procurar outro emprego. Recordo ainda hoje vivamente a violência despropositada com que ele arremessou os negativos para o cesto de lixo.
Na hora do almoço, deixei-me ficar na loja. O brilho do acetato cintilava, sorridente, no caixote do lixo preto, como uma estrela no firmamento tentando cativar o seu fadado.
Peguei nos negativos e resolvi ampliá-los para papel, ou seja, fazer aquilo a que a maior parte das pessoas chama “revelar”.
Uma a uma, as fotografias foram assomando. As quatro. Eram perfeitas. A distribuição da luz, os contrastes suavizados, as sombras apaziguadas, conferiam àquelas imagens de rosto feminino a dignidade de estátuas helénicas. E até os olhos fechados lhes emprestavam a serenidade do mármore.
Amorosamente, coloquei-as dentro de um envelope, com o cuidado de quem embala porcelana fina. Ao fim do dia, levei-as para casa.

Não tinha apetite. Estiquei-me na cama, com os olhos pregados no tecto. Vivo num quarto alugado numa casa velha, daquelas que ainda têm forro de madeira. Perco horas, de barriga para cima, vagueando pelos desenhos dos nós da madeira, encontrando sempre novos seres, consoante a luminosidade e o ângulo de visão. Algumas figuras são-me já familiares e atrevem-se mesmo a comentar e criticar alguns passos da minha vida. (Pequenas concessões de quem não tem muita companhia.)
Estava desgastado, saturado do Estúdio Alegria mai-las suas tristezas. Não suportava a avareza e a rispidez do patrão. Para além disso, o trabalho era rotineiro, entediante, monocórdico, estupidificante…
Não tinha vindo ao mundo para semelhante sina. Não para cumprir aquela existência de cinza pardacenta. Deveria haver algo mais. Cada pessoa nasce com um desígnio, uma missão, sei lá, qualquer coisa que dê sentido a uma vida. E cada um tem que descobrir para que está talhado. Com a certeza de que esse desígnio é sempre tudo menos o óbvio. Não é ser médico, como queria a mamã; ou padre, como desejava a titi; ou ainda advogado, como insistia o papá.
A maior parte das pessoas nunca se encontra; alguns nascem para salvar; outros, para criar; outros ainda, para destruir. A maioria morre sem ter vivido. Sem ter cumprido o seu desígnio. Decerto que o meu não era ser escravo do senhor Alegria até ao resto dos meus dias. Ou dos seus. Teria de me despedir, arranjar outro emprego. Ou então arranjar um suplementar.
Coloquei as quatro fotografias apoiadas na janela do quarto e deixei-as olharem para mim. De olhos bem fechados, VIAM-ME por inteiro. Compreendiam-me. Totalmente. Talvez que, ao fecharem os dois globos oculares, um terceiro olho se ligasse – o “olho místico.” Uma aura de ampla comunhão envolveu todo o quarto. Ouvi-me balbuciar de alegria, no momento em que também fechei os olhos.
| posted by Mito, sexta-feira, agosto 04, 2006 | 3 comments |




Capítulo V
Heitor

Antunes. Aníbal Antunes. Este homem veio agitar o lodaçal em que a minha existência começava a transformar-se.
Há duas semanas, estando o senhor Tristão ausente do seu estabelecimento, o telefone tocou e eu atendi. Do outro lado da linha, uma voz de sotaque micaelense transpirava de cumplicidade:
- Senhor Alegria, fala Aníbal Antunes, do Banco Comercial dos Açores. Já tenho notícias da Suíça!
Inexplicavelmente, uma voz dentro de mim ordenou-me que me fizesse passar pelo meu patrão. De imediato, pressionei as narinas ligeiramente e respondi:
- A sério? Ora diga lá, amigo. Peço desculpa por me estar a fazer ouvir mal, mas é que estou cá com uma constipação…
- Isso é que é mau… Mas tenho boas novas. O banco suíço já telefonou a confirmar a transferência.
- Óptimo, óptimo.
- Bom agora já sabe, para movimentar o dinheiro só com os códigos que eles lhe deram. Veja lá onde guarda isso!
- Esteja descansado, isso está guardado em lugar seguro.
- Muito bem, as melhoras, então. E já sabe, quando precisar de mais alguma coisa, apite. A propósito, estive hoje com a sua prima Margarida. Continua com a boa disposição de sempre. Aquela mulher é um furacão.
- Tem razão, o caro Aníbal. Boa tarde, então, amigo.
- Até à próxima, senhor Alegria. Passe um bom resto de dia. Com licença.
Respirei fundo durante alguns momentos. O sacana do patrão tinha movimentos bancários secretos. E por que diabo nos Açores? Algo me dizia que poderia tirar partido daquela situação. Sabia até onde o senhor Alegria possivelmente guardaria os códigos: no cofre que tinha debaixo da reprodução do quadro de Cezanne, Os Jogadores de Cartas. Já por algumas vezes o tinha entrevisto a abri-lo e as marcas nos quatro cachimbos da parede representados na tela mostravam claramente onde ficava o mecanismo de abertura. No entanto, o cofre era de combinação, pois o ouvira rodar o mecanismo. Não podia perguntar-lhe simplesmente qual era o código. Teria de haver uma maneira.
Afinal, havia mais um coleccionador no Estúdio Alegria. Só que este coleccionava dinheiro! Todos os anos de exigências e maus pagos me fizeram tremer de indignação, mas deram-me motivação para me ressarcir.
Custou-me a passar esse dia de trabalho. Quando voltou, o senhor Tristão perguntou se tinham telefonado e eu respondi que não, tentando parecer natural. Ainda gaguejei:
- Está à espera de algum telefonema importante? Se telefonarem, que digo?
O meu interlocutor pareceu hesitar na resposta e acabou por dizer, displicentemente:
- Não, não. Perguntei só por perguntar.
Intimamente, senti um gozo especial. A partir daquele momento, o senhor Alegria não estava já na posição superior do dissimulado que engana toda a gente. Desde então, continuei a dizer que sim, espreitando-o de soslaio. Consegui confirmar que o cofre se encontrava atrás do quadro e ainda que os cachimbos da parede assinalavam a zona onde o senhor Alegria pressionava com aqueles dedos esquálidos e gananciosos.
Um dia, estando em amena cavaqueira com o meu Botia Modesta, ele sugeriu-me a solução ideal. Modesto, peixe genial! É claro!
Como é que eu não havia pensado nisso?
| posted by Mito, quarta-feira, julho 26, 2006 | 2 comments |

Capítulo III

Heitor

Escuro. Está muito escuro. É nas trevas que tudo se urde. Na escuridão da noite, germina a semente, reza o aflito e espera o Iniciado.
É na câmara escura que o nitrato de potássio queimado se agarra teimosamente ao acetato, contra a corrente da lavagem, configurando os milhares de pontos que darão definição à imagem nítida e contrastada que se poderá fixar na retina em banho de claridade. Tudo tem uma gestação e a flor brota da terra assim como o sol rasga a noite ao alvorecer.
Não consigo dormir. Embalo as insónias em recordações do tempo em que fiz a descoberta. Faz hoje dez anos que comecei a trabalhar no Estúdio Alegria, propriedade de Tristão Alegria, que ainda é hoje o meu patrão. Trata-se de um estabelecimento com tradição na cidade em que vivo, uma vez que foi fundado pelo avô do senhor Tristão, Cândido Alegria, que aproveitou a fortuna da esposa, Letícia, para montar um negócio de um luxo considerado escandaloso na altura. Durante décadas, o Estúdio Alegria constituiu um ex-libris da cidade e o Senhor Cândido mantinha a sua invejável posição de rico e de artista. Sim, que a sua paixão eram os retoques e os cenários que acompanhavam as fotografias da época. Depois, o seu filho único, Plácido, desbaratou toda a riqueza familiar, como sempre se queixava o Senhor Tristão, deixando-lhe, a ele, a dura tarefa de continuar a tradição e de cuidar da sua querida irmã, Hortênsia, doente mental que vivia internada na Suíça e era um “sorvedouro de cabedais”, ainda nas palavras do amantíssimo irmão. Solteiro inveterado, vivendo para o trabalho, cultivando a sua mesquinhez com afinco, não se lhe conhecem outros afectos. Apenas por uma vez recebeu a visita na loja de uma prima açoriana, de nome Margarida, uma mulher bela e espampanante que encheu o Estúdio Alegria com o seu espírito durante as três horas que lá demorou. Que contraste com o primo! Duas vezes por ano, o patrão lá abalava para as altas paragens suíças, a visitar a mana. Demorava uma ou duas semanas e regressava feliz, com a alma lavada, talvez por sentir o prazer de um dever cumprido. Ai que prazer ter um livro para ler, teclo, distraído. E não o fazer. E não o escrever.
Foi logo com esta resenha histórica que o senhor Tristão me recebeu “à experiência”, por recomendação de um tio meu, que nunca cheguei a conhecer. Sempre lamentando a pouca fortuna, os desvarios do pai e as avultadas despesas, lá me foi dando um salário de miséria e trabalhinho até fartar. Horas extraordinárias era vocabulário desconhecido no dicionário das remunerações do senhor Tristão. Cedo me fui apercebendo de que era a sovinice do patrão que me impedia de ter uma vida mais desafogada. Porém, fui ficando, talvez para grande espanto do próprio. A minha motivação: a minha colecção.
Tudo começou na segunda semana de trabalho. Após ter passado os primeiros dias executando enfadonhas tarefas de rotina, o senhor Tristão achou por bem confiar-me trabalhos mais arrojados: nada mais, nada menos que tirar fotografias “tipo passe” aos clientes da loja. Logo na primeira tentativa, fui brindado com a admoestação seca:
- Oh, senhor Heitor, senhor Heitor, o que foi fazer... Tem de ter mais cuidado; assim só me vai trazer prejuízo. Veja o que faz!
Ao lado dos negativos cortados, as fotos da cliente. Tinham todas ficado de olhos fechados. Bem fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 19, 2006 | 2 comments |

Capítulo I


Heitor

De olhos bem fechados. Meticulosamente, miro, remiro os últimos exemplares da minha colecção. São fenomenais e, melhor que isso, são fruto de um engenhoso esforço de obtenção. Observo-os mais uma vez, embevecido com o meu critério. Reparo em cada detalhe, detenho-me em cada “nuance”. Com os olhos bem fechados.
Hoje, alcancei o número cinquenta mil. Quinhentas centenas de exemplares, organizados, datados e catalogados, espalhados pelo apartamento, ocupando uma boa parte do espaço disponível, como se fossem membros de uma família numerosa.
O facto de não os poder expor sempre me galvanizou, ao invés de me retrair. Reconheço que a acumulação é já impressionante, mas chega a ser assustador pensar no que ainda está por fazer, no desafio que coloquei a mim próprio. Como alcançar o milhão no curto espaço de uma vida? Terei de me transcender, de criar alguma estratégia espectacular que me permita acelerar ainda mais o ritmo com que vou coleccionando. E acima de tudo, manter o sigilo.
Não sei onde tudo isto me vai levar. Sei que não penso noutra coisa. Encaro-o como uma missão. Às vezes, gostava de partilhar com alguém este meu hobbie. E os seus segredos. E as portas que abre. E as que fecha.
Conheço cada um dos exemplares da minha colecção. Cuido deles zelosamente.
Eles sabem que podem contar comigo. Podem dormir o seu sono sossegado e eterno. Eu estou a velar.

Amanhã cedo, vou iniciar a execução do meu plano secundário: garantir a minha autonomia financeira. É indispensável que o faça. Como me desola manter este emprego estúpido! Como me rouba o tempo precioso para a consecução dos meus objectivos! Se não teclasse estas mal traçadas linhas – curiosa expressão! – no meu computador pessoal, talvez enlouquecesse. Ou talvez isso já não seja possível. Talvez tenha alcançado um estádio em que a loucura já nada pode contra mim.
Nem contra ti, Modesto, meu pobre peixe que nunca te mostras senão à noite, de relance. Neste momento, que sonhos húmidos ruminas tu, debaixo desse basalto açoriano que me ornamenta o aquário? Terás tu opinião sobre o que faço? Há muito me convenci da tua aquiescência. De outro modo, ter-te-ia já desalojado, como fiz aos teus companheiros. Como me pareciam abelhudos, espreitando pelo vidro! Estupefactos com o que viam. Os olhos redondos de censura!
Modesto, meu amigo, como gostava de te levar comigo amanhã, para veres in loco a aplicação dos teus planos superiormente gizados… Prometo que não vou falhar. Seguirei à risca as tuas recomendações. A minha mão não vacilará. Terás de esperar até que regresse. Contar-te-ei tudo ao pormenor. Terás de te habituar à ideia de me não veres durante bastante tempo. Não te preocupes, arranjarei alguém para te alimentar todos os dias.
Não pretendo fazer mais nada na vida senão cumprir a minha missão e prosseguir a minha colecção. A ninguém revelarei os meus desígnios.
Desligo o computador. Regresso às minhas últimas peças, capturadas hoje. São perfeitas. Fito-as fixamente. De olhos bem fechados. Fechados.
| posted by Mito, quarta-feira, julho 12, 2006 | 2 comments |